A importância de pôr os verbos no passado: a história

Foi uma semana corrida ajudando os meus pais a resolver todas as questões que aparecem imediatamente após o coração de alguém parar de bater. Fazia quase dois anos que eu não via a minha irmã, agora faz quase cinco, ainda não a vi e nunca mais vou ver. Aquele corpo duro, imóvel, dentro do caixão não era ela. O enterro aconteceu um dia depois dela morrer, meus pais queriam fazer tudo o mais rápido possível. Para que prolongar as coisas? Eu provavelmente nunca vou entender o que é perder um filho. Avisamos a todos que lembramos, mesmo não dando tempo de que pudessem se organizar para aparecer. A capela abria às nove da manhã, minha mãe queria que o corpo fosse enterrado às onze. Pedi para que pelo menos déssemos algumas horas para quem quisesse aparecer e se despedir. Acho que nenhum de nós esperava que muitas pessoas fossem vir com tudo acontecendo tão subitamente. Acho, na verdade, que meus pais nem estavam pensando nas outras pessoas. E acho que nem deveriam pensar. 

 

De início vieram alguns amigos da Gabi com os seus familiares, logo apareceram amigos meus da faculdade que também a conheciam. No meio da manhã apareceu uma moça com um violão dizendo que estava ali para outro funeral, mas que tinha visto que se tratava de uma menina de vinte e cinco anos e perguntou se podia tocar uma música. Começaram a chegar cada vez mais pessoas, familiares que moram no Rio e que quase nunca vemos, amigos que eu não via fazia muito tempo, professores da Gabriela do ensino médio e da faculdade. De repente chegou uma van com a parte da família que mora em Porto Alegre vinda direto do aeroporto. Logo depois chegou um grupo de alunos fardados do Colégio Naval, onde o meu pai dá aulas, com uma enorme coroa de flores. O cemitério estava lotado e todos estavam lá para ver a Gabi uma última vez. Foi lindo. 


Não derramei uma lágrima, minha mãe não chorou, meu pai também não. Não é o que a Gabriela faria. Naquele dia fomos todos um pouquinho ela. Amigos chegavam ao velório chorando e cabia a nós, a família que havia apenas perdido um membro, consolá-los. “Não temos que ficar tristes, queremos um dia alegre como ela gostaria que fosse.” Se a Gabriela estivesse ali, no seu próprio velório, ela certamente estaria consolando as pessoas que chegassem chorando e mostrando para elas que não tem motivo para tristeza, que a vida pode ser linda até quando acaba. E nós estávamos sendo honestos ao pedir para que as pessoas não ficassem tristes, sabíamos que éramos felizes por ter tido ela nas nossas vidas, por ter podido aprender tanto. Foi lindo de ver todas aquelas pessoas que ela cativou prestando a sua homenagem. Não faltaram flores, não faltaram abraços, não faltou amor naquele dia em que dissemos adeus.

 

A semana passou voando e logo eu estava no avião voltando para a minha pesquisa de campo. Iria encontrar o Nebojsa em uma escala em Dubai. Me sentia aliviada por não precisar voltar para Uganda sozinha logo depois de perder a minha irmã. Eu não falei para ninguém, mas depois que a Gabi morreu uma ideia veio morar na minha cabeça “vou ter uma filha e vou chamar ela de Gabriela”, logo eu, que nunca quis ter filhos. 

 

Encontrei no aeroporto de Dubai um homem que me olhava como se eu fosse a coisa mais importante do universo, um olhar apaixonado. Passamos aquela noite toda abraçados. No meio de tanto abraço ele olhou para mim e disse “vamos ter uma filha e vamos dar o nome de Gabriela”, eu gelei. Aquilo tudo era um sonho do qual eu nunca quis acordar, alguém capaz de ler a minha mente daquele jeito, aquela entrega, aquela paixão, aquela conexão. A gente se entedia e eu sabia que tudo ia ficar bem. Durante os primeiros dias em Uganda eu acordava no meio da noite atormentada e só conseguia voltar a dormir novamente quando ele me abraçava na cama.

 

Faz três anos que isso tudo aconteceu. Faz três anos que a minha irmã morreu. Faz seis meses que terminei aquele relacionamento. 

 

Na semana passada ele entrou em contato comigo. Combinamos uma conversa pelo Skype e eu tinha esperanças de falar sobre os sentimentos aos quais ainda estava presa. Ele me disse que não sente nada em relação ao passado. Sinto que me trata como uma estranha, disse para ele que eu achava que deveria ser importante independente de não estarmos mais juntos. Ele disse que eu sou importante, mas adicionou que é porque todas as pessoas são importantes. Eu disse que ele queria dizer que sou igual às outras pessoas e aquilo não era legal. Ele me disse que não, porque todas as pessoas são únicas. O que para mim foi repetir que eu sou igual às outras pessoas. Ele diz que eu não entendo o que ele quer dizer e ele não entende o que eu digo. Foi muito sofrido perceber que desde aquela noite em Dubai eu estou me agarrando a um momento que passou e vivendo o meu agora esperando que ele seja como aquele então.

 

Primeiro pensei que a conversa tinha sido um desastre, chorei o fim de semana inteiro. Mas então percebi que eu parei de falar que o amo, agora entendo que eu o amei.

 

Isso me fez lembrar que logo após a morte da minha irmã eu não tinha capacidade de colocar os verbos no passado quando falava sobre ela. Achava que isso não era necessário porque, afinal de contas, ela vai sempre existir para mim. Depois de um tempo, foi se tornando normal me referir ao passado quando falo nela e fui mudando a conjugação dos verbos aos poucos.

 

Desde que terminei o meu relacionamento eu me agarrava a certos sentimentos e me recusava a usar os verbos no passado. Eu amo. Ao agir dessa maneira eu fechava os olhos para o que acontecia no momento presente e me embriagava com a ilusão do que passou. Fazer isso me machucou bastante, eu precisei ser atropelada pelo caminhão da realidade para perceber que estava usando o tempo verbal errado mais uma vez. A verdade é que eu amei. 

 

Quando a minha irmã e eu morávamos juntas e uma de nós duas estava triste a gente saía junto para comer uma coisa gostosa. Hoje em dia eu peço um delivery de uma coisa gostosa se eu estou triste. Eu criticava ela porque bebia coca cola, comia bacon e salame. Parece que ela me deixou esses gostos de herança porque desde que ela se foi eu tenho desejo de comer bacon, salame e tomar coca cola. Eu ligava para ela sempre que eu precisava conversar sobre qualquer coisa. Hoje em dia eu escrevo cartas que ela nunca vai ler. A minha irmã foi muito importante na minha vida e ela vai continuar sempre existindo não só nas minhas lembranças, mas como parte de mim. Ainda assim, sempre que eu falar sobre ela vou usar os verbos no passado, porque ela já não está aqui nesse mundo material da maneira como era ou estava. Ela sou eu agora, mas não é mais ela. Estou escrevendo esse texto vestida nas roupas que eram dela e que agora são minhas. O amor por ela ainda existe, a gratidão ainda existe, todo o aprendizado vai existir até o final da minha própria vida. Mas ela passou para o lado da existência no qual os verbos precisam ser postos no passado.

 

E agora eu posso dizer que eu entendi por que é tão importante pôr os verbos no passado. O meu último relacionamento também foi importante, também me ensinou muito e me fez mudar. Mas acabou e é só ao compreender isso e ao começar a me referir a ele no passado que eu vou ser capaz de admirar tudo o que foi bonito, intenso e verdadeiro; e que não é mais. É preciso colocar os verbos no passado para que o passado esteja onde deve estar, pois quando o trazemos para o presente ele se distorce e perde as suas virtudes. 

 

Eu te amei. Sei que você me amou também. Foi tudo muito bonito. E agora acabou. Agora sou capaz de pôr os verbos no passado. 

Comentários

  1. Esse texto me fez refletir tanto... Já fazem 6 anos que o meu avô faleceu e não me referia a ele no passado. Fazem 2 meses que terminei um relacionamento de mais de 7 anos, e ainda não estava usando os verbos no passado. Acredito totalmente que esses acontecimentos e eventos de pessoas importantes agora fazem parte de mim. Somos a herança do ontem. É doído pensar que coisas tão profundas, importantes e especiais acabam. E ler esse texto foi uma gota que meu copo de entendimento precisava para transbordar.
    Obrigado por compartilhar isso com o mundo!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que delícia esse comentário! Obrigada. Me deixou muito feliz. =)

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas