Acho que eu nunca tinha visto um gato morto

 O quão estranho é um corpo morto. Rapidamente o gatinho ficou duro, em uma questão de poucos minutos já não parecia um ser vivo, mas sim um bicho de pelúcia. Assim como pessoas mortas se assemelham a bonecos. É muito estranho. Mas talvez ao mesmo tempo, ver um corpo morto traz um apreço novo por um corpo vivo. Olho para o Dalì e para a Bianca com olhos um pouco renovados. Gatos vivos. Cresceram, são grandes, desenvolvidos, estão envelhecendo. Estão vivos. Acho que foi a primeira vez que vi um gato morto. Um gatinho miudinho, um pedacinho de vida no mundo que não durou muito, mas que talvez tenha durado apenas o suficiente, pois viveu. 

Será que a gente vai perdendo a capacidade de chorar à medida que a gente cresce? A gente não fica mais muito triste e desaba por uns minutos para depois ficar bem de novo. A gente fica pouco triste, por bem mais tempo. Vamos parcelando a tristeza, assim como fazemos com as compras no cartão de crédito. Quando a gente é adulto nos é dada essa opção. Ao invés de encarar as coisas difíceis de uma vez só - como uma compra que precisamos fazer usando metade do nosso salário -, podemos ir lidando com ela aos poucos. Dividir em meses. Parcelar. O problema de viver assim é que acabamos parcelando coisas demais, acumulando as parcelas e tendo que lidar com coisas demais por muito tempo. Estou ainda falando das tristezas. E das finanças também. 

Cappuccino foi o nome que demos a ele. Fiquei em dúvida se era a sujeira da lama que deixava as patas dele mais escuras, mas dava uma impressão que que tinha café em baixo e espuma de leite por cima, onde o pelo era mais claro, igual a um cappuccino. Escutamos gritos quando estávamos na varanda tomando café da manhã. Assustadas e curiosas fomos até  a sacada para tentar entender do que se tratava. Lá embaixo vimos uma gata tentando fazer um filhote levantar e ir embora com ela. Quando ela tentava mover ele, ele gritava. Ela parava, se acocorava do lado dele, talvez pensando no que fazer, talvez esperando por um milagre. Tentava pegar ele, ele gritava. Não era a imagem de uma mãe aflita. Pensa em uma mãe humana tentando levantar um filho doente do chão sem sucesso. Ela gritaria por socorro, ela gritaria por ajuda. A gata parava do lado do corpo do filhote e esperava como quem contasse o tempo necessário para saber que não havia o que fazer e que era hora de ir embora. Deixar a natureza seguir seu curso. Foi o que ela acabou fazendo. Como quem entende o que está acontecendo, certa de que é isso o que tem que fazer, ela vai embora e deixa ele ali no chão. Depois eu soube que esse gatinho tinha três irmãos que também morreram. Até agora não sei o que matou eles. Mas não deve ter sido a primeira vez que essa gata teve que abandonar um bebê que não se levantava. 

O conflito nas nossas cabeças era enorme. Deveríamos fazer alguma coisa? Havia algo que poderia ser feito? Quais deveriam ser as nossas ações e quais seriam as consequências delas? Estávamos falando de uma vida. Estávamos encarando uma situação desconhecida e não entendemos nada de bichinhos ou mesmo dessa natureza enorme que rodeia a gente. A Karina ainda deve ser menos ignorante que eu, já que se formou em biologia. Mas eu? Tenho certeza que a gata que resolveu abandonar o filhote entende mais das coisas que eu. De qualquer forma o portão da piscina estava fechado e não teríamos como chegar até o filhote.

O guardião da piscina voltou do almoço e me interfonou. "Mariana, tem um gatinho caído aqui, fraquinho, você tem um pouco de leite?" Eu não tinha leite, mas fui lá olhar o gato. Respirava, não se levantava, estava quietinho, bem fraquinho. Karina e eu nos olhamos e acabamos decidindo levar o gato para um atendimento de emergência. De repente eles poderiam ajudar ele, imagino que esse era o pensamento nas nossas duas cabeças. O que exatamente nos faz tomar esse tipo de decisão? Pena? Senso de dever? Necessidade de se colocar no mundo como uma pessoa boa? A verdade era que a tal decisão nos colocava como responsáveis por aquela vida, pelo menos até sermos capazes de encontrar alguém que quisesse adotar ele. E ninguém quer adotar um bichinho doentinho, as pessoas querem ele depois que ele já está bem. Eu entendo. 

Fomos para a clínica veterinária. Parece que o bichinho tinha talvez menos de um mês de idade. Não devia nem comer sólidos ainda, só mamar. Estava com a temperatura muito baixa e desidratado. O veterinário não soube nos dizer o que estava deixando o gato mal, apenas que o gato estava muito mal. "Poderiam ser tantas coisas", disse ele logo após saber que se tratava de um gatinho de rua. "Se ele voltar para casa não sobrevive", ele continuou, "...precisa internar...", e começou a nos falar dos preços. O quão bizarro é que o dinheiro está assim tão envolvido nas vidas. Não só no viver das vidas, mas na contabilidade do valor desse viver. Vamos gastar não sei quantos reais que não temos para tentar salvar a vida do gatinho para o qual temos que encontrar um lar depois? "...mesmo internando pode ser que ele não sobreviva, está muito mal.", completou o veterinário. Vamos não apenas gastar não sei quantos reais, mas prolongar o sofrimento do gatinho que vai ficar não sei quantos dias internado tendo soro injetado por todos os seus buracos para talvez nem sobreviver? 

"Existe uma opção para ele parar de sofrer?", fui eu quem fez a pergunta que todo mundo evita. Eutanásia. Eles também chamam de sacrifício. Acho que o meu maior problema é com o sofrimento, nunca tive muito problema com a morte. Morrer eu não sei se é ruim, eu nunca morri, mas sofrer eu sei o que é e não gosto de ver os outros sofrendo. Cento e cinquenta reais a eutanásia, mais cem reais para cremar o corpo com a funerária(?) conveniada. Será que só eu acho isso tudo muito bizarro? Como que a nossa sociedade pode achar normal atendimento médico privado? Hospital privado? Eu já acho bizarro o dinheiro estar envolvido na saúde animal. Imagina um pessoa morrer de algo tratável porque não tem dinheiro para ser internada em um hospital?! E acontece demasiadamente. 

No final ele disse que poderia haver a chance dele ir para casa com a gente e melhorar, teríamos que manter ele aquecido porque a temperatura estava muito baixa e teríamos que mantar ele hidratado administrando soro. Ele deu glicose pro bichinho, soro, remédio para dor, colocamos ele em uma caixinha com luvas de látex cheias de água quente para tentar trazer a temperatura dele para cima. Ele nos deu um leite em pó próprio para gatos. Nos preparamos para cuidar dele pelo menos até o dia seguinte quando, se tudo corresse bem, ele poderia estar um pouco melhor. O veterinário nem nos cobrou pela consulta no fim. Mesmo nesse mundo capitalista há profissionais que põem a vida acima do dinheiro né. Mas eu também acho que ele não tinha muita esperança na melhora do bichinho. 

Fomos para casa e a Karina, que já tinha chorado no consultório veterinário com a possibilidade da eutanásia, ficou responsável por cuidar do bichinho e tentar alimentar ele com o leite enquanto eu fazia o almoço. Desde que saímos do veterinário o gatinho parecia estar se mexendo mais e reclamando mais, o que parecia ser sinal de que ele estava um pouco melhor, reagindo mais. Estava na cozinha lavando e cortando cenouras, batatas doces, cogumelos, lavando salada e escutando os gritinhos agudos do gato baby. Depois ficou silêncio. Tranquilo. Achei que tinha se acalmado com o remédio e dormido. 

Não vou deixar de confessar que eu estava preocupada pensando que teríamos que cuidar do gato a noite toda e amanhã tenho que trabalhar, e que não tínhamos idéia do que faríamos com ele no dia seguinte. Ouvi a voz da Karina me chamando. Fui lá no quarto onde o gatinho estava deitado no colo dela em cima de uma toalha e ela me disse "Acho que ele morreu."

Realmente tinha parado de respirar. Tão bonitinho ali deitadinho. Era um gato lindo. Fiquei imaginando como ele seria depois de um banho. Depois de grande. Seria lindão. Mas estava ali imóvel. Um saquinho sem vida. Karina cutucou várias vezes com medo de achar que ele estava morto e ele não estar. Eu tive uma sensação parecida vendo a terra caindo em cima do caixão da minha irmã no enterro. É muito estranho. O medo de estar errado, da pessoa ainda estar viva e de estarmos matando ela porque a estamos enterrando. Completamente irracional, mas muito real. 

Interfonei para a portaria. O porteiro e a menina que trabalha aqui fazendo um monte de coisas estavam acompanhando o desenvolvimento dos acontecimentos. Falei para ele que o gatinho não resistiu. Perguntei o que fazer com o corpo. Ele me disse para levar na portaria que eles resolveriam. Não sei o que foi feito, mas ele fez questão de me interfonar depois para dizer que estava resolvido. 

A morte é parte da vida né. Mas mesmo assim não deixa de ser estranho um dia em que presenciamos a morte. Eu acho que sou uma pessoa privilegiada por não ter a morte banalizada na minha vida como ela é na vida de tantas pessoas devido à situação em que se encontram. Espero que continue sendo assim, um evento estranho. Parte da vida, mas uma parte pequena. 


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