Quarta-feira de cinzas

 Passou o carnaval que não foi carnaval. Passou o carnaval que não teve. E talvez tenhamos tido agora os dias do ano em que as pessoas mais viveram no passado, nas lembranças. Sem vontade de estar aqui, com vontade de estar lá, comemorando o carnaval. Ou até no futuro também... "Ah, quando eu receber a vacina..." "Ah, o carnaval de 2022..." Ou até mesmo uma mistura de passado com futuro, "Sabe que depois da pandemia de sei lá o que, no ano de mil e sei lá quando, foi o carnaval mais louco da história, imagina como não vai ser o carnaval depois que essa pandemia acabar! Mal posso esperar!" 

E mal pode mesmo, mal podemos. Quem quer viver no dia de hoje? Sem carnaval, sem vacina, sem viagem, sem proximidade, sem abraço... É um esforço coletivo para se lembrar de um passado melhor e ter esperanças de um futuro que a ele se assemelhe, e que chegue logo. E que traga um baita carnaval, em que todos vão querer - e poder - comemorar como doidos. Sair para todos os bloquinhos, até aqueles que começam seis horas da manhã (coisa que eu nunca entendi). Viver como se não houvesse amanhã, porque vai que no amanhã começa uma nova pandemia?! Se abraçar e se beijar muito, beijar todo mundo, porque Ah! Que saudades dessa libertinagem! E dessa liberdade. A quarta-feira de cinzas amanheceu bem cinza. Mas não há chuva que possa impedir que as pessoas tomem as ruas e estendam um carnaval que vai durar mais de semana, mais de mês, que vai ser o próximo carnaval. 

A gente se apega a essa crença, a essa vontade, a esse sonho, para sobreviver ao dia de hoje. Sobreviver ao hoje porque vai passar e dias melhores virão. O que seria da nossa existência sem essa esperança infundada e inabalável que temos? 

Vamos olhar pelo lado bom. Pelo menos esse ano a nossa casa não vai ficar cheia de purpurina. De repente esse ano até conseguimos terminar de limpar toda a purpurina do ano passado e deixar a casa pronta para receber a nova onda de brilho desse carnaval que vem aí e que vai ser "o melhor carnaval de todos os tempos". 

Mas quem não gosta de reclamar da purpurina infinita dentro de casa? Quem não gosta de estar no trabalho pós-carnaval e ter um colega tirando uma purpurininha que ficou perdida na sua cara ou no seu cabelo? Vamos admitir, não tem lado bom. 

Mas a gente vai continuar se esforçando para criar um. É essa vontade de ser feliz que está no nosso DNA. A gente vai cavar e cavar em toda essa lama até encontrar uma pedra preciosa. Uma história boa de contar. Uma mesa de buteco na calçada, uma cerveja gelada e amigos, muitos amigos. Felizes, livres, sem máscaras (o que agora tem sentido duplicado).

O tanto de gente morrendo, o retrocesso do país, o tanto de gente com fome, comendo o que quem pode comprar comida não quis, tá difícil encontrar motivos para comemorar. Mas quando a pandemia acabar, quando esse governo cair, pode encomendar dez carnavais, que um só não vai ser suficiente.   

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